Um dia, ao passar na Rua do Torreão, na Guarda, vi um antigo armazém de madeiras. Curioso, entrei e parei logo à entrada da porta. Uns cinco metros de piso cimentado e, logo a seguir, uma ampla área em terra batida. Estendidas no chão e encostadas às paredes, viam-se tábuas e barrotes dos mais variados feitios, arrumadas e espalhadas pelo grande espaço. Olhei para a minha esquerda e vi um pequeno escritório.
De repente, o senhor que estava lá dentro viu-me e veio ter comigo, perguntando: - Precisas de alguma coisa? Surpreendido, disse que não e que só pretendia ver o que havia lá dentro, por curiosidade.
O senhor Alfeu, assim se chamava o empregado, disse então: Entra. Vem comigo que eu mostro-te tudo. Seguimos pelo piso de terra batida e ele, ia explicando divertido tudo o que por ali havia. Eram madeiras por todo o lado. Já no fim da visita, abriu uma grande porta velha que dava para um quintal com várias árvores e uma cerejeira. Fiquei admirado como uma casa que parecia pequena por fora, tinha um quintal tão grande nas traseiras.
Terminada a visita, o Alfeu (depois ficámos grandes amigos) disse-me para entrar no escritório e explicou o que fazia. Ao olhar para a minha direita, a um canto, vi uma máquina de escrever toda preta. Apenas as letras, eram brancas. Aproximei-me e levemente, toquei em duas ou três teclas. O Alfeu, deve ter achado graça e disse que, se quisesse, podia escrever um bocadinho. Olhei-o divertido e disse que sim, que gostava de ver como era. Foi buscar uma cadeira e mandou-me sentar. Depois, meteu na máquina uma folha de papel, sentou-se e começou a explicar, como se fosse o meu primeiro professor de datilografia. - Vês? Aqui, mete-se o papel e depois a folha, tem de ficar direitinha. Aqui em cima, ficam os números e em baixo, só há letras. Estás a ver. Agora, carregando nas teclas, vou escrever o teu nome. Como te chamas? Zé Manuel, respondi. Devagarinho, foi carregando nas teclas e escreveu, Zé Manuel.
-Estás a ver? perguntou. Agora, senta-te na minha cadeira e tenta fazer o mesmo. Quando chegares ao fim da linha, carregas neste manípulo, para mudar de linha. Podes encher a folha, se quiseres.
Fui escrevendo letra a letra, devagarinho e comecei pelo meu nome. Depois o Alfeu afastou-se e fui escrevendo o que me apetecia. Pequenas frases, nomes, etc. O meu amigo elogiou-me e disse que estava muito bem. Que podia voltar todos os dias, se quisesse.
E assim aconteceu. Nas férias grandes, cheguei a passar ali tardes inteiras. Deambulava pelo armazém e escrevinhava na máquina o que me ia ocorrendo, até que começaram a surgir as primeiras histórias. Textos curtos, mas com principio, meio e fim. O Alfeu, era o meu mestre. Corrigia os erros e sugeria alterações, aqui e ali. Depois, um pouco mais tarde, acho que começou a gostar dos textos que eu escrevia. Dizia que tinha jeito.
Foi aí que comecei a guardar as folhas que mais me entusiasmavam e que mostrava à minha irmã, quando chegava a casa. Talvez por simpatia e carinho, dizia que eu tinha muito jeito, tal como o Alfeu. Talvez tenham sido os meus primeiros passos numa aventura que não mais acabou, apesar do longo interlúdio, motivado pelos estudos e pelas andanças da vida. Porém, ainda hoje recordo com saudade este meu grande amigo que nunca mais encontrei, mas que não esqueci. Bastante mais velho que eu, pediu-me para ir ao seu casamento, o que fiz com grande prazer, ainda que fosse apenas uma criança. Talvez tenha sido ele e por ele, que me dediquei com entusiasmo à escrita, numa máquina que teria pelo menos, mais 70 anos do que eu.
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