Dizem que escrever é um hábito que vem de menino, mas há quem tenha outros hábitos, que não a escrita. Diria que é mais uma inclinação natural, que um hábito propriamente dito. No meu caso, foi a escrita que mais me despertou a atenção, talvez porque sempre tive uma relação difícil com as matemáticas e químicas, difíceis de entender. Preferia garatujar uma redação, a ter de fazer contas de somar ou dividir.
E foi exatamente por isso, que cedo comecei a escrever pequenas histórias que, de uma forma geral, agradavam aos meus amigos, que pediam mais. Exigentes, começaram a pedir histórias aos quadradinhos, muito vulgares naquela época. Eram outros tempos, em que o improviso tinha de compensar a falta de meios e de dinheiro.
Um dia, decidi que havia de fazer um filme com os meus próprios recursos. Teria mais ou menos oito anos e muitos sonhos e aspirações pela frente. Os meus amigos da altura, de quem perdi o rasto até ao dia de hoje, estavam fartos de pequenas histórias de aventuras. Queriam um pouco mais, já que ainda não tínhamos idade para entrar no cinema. Queriam ver um filme, mas projetado na parede, como se fosse no cinema. Uma exigência difícil de satisfazer naqueles tempos, mas que espicaçava a minha curiosidade.
Fui pensando no assunto, juntando ideias, até que deitei mãos à obra. Cortei cinco pedaços de madeira, que preguei umas nas outras, até obter uma caixa retangular. Depois, fiz um buraco quadrado na tábua da frente. Coloquei massa em todas as junções e pintei tudo de castanho. Engendrei duas pequenas manivelas com dois arames, para fazer rodar o "filme". Para isso, comprei papel de celofane que se rasgava com muita facilidade. A retro iluminação, seria feita com uma antiga lanterna do meu pai.
A caixa do cinema, até estava bem acabada e dois dias depois, tinha um cheiro agradável a tinta fresca. Eu e os meus amigos, estávamos contentes com o improviso. Faltava agora, arranjar o conteúdo para o filme. Num dos muitos livros aos quadradinhos que havia do Major Alvega, copiamos as imagens, colocando o celofane já cortado em tiras à medida e depois, com uma caneta de tinta da china, pacientemente, íamos copiando as figuras que estavam no livro. Foram vários dias de infinita paciência, porque a tinta da china demorava a secar. Por fim, era chegada a hora de colorir a nosso gosto as imagens copiadas do livro. Vários tubinhos de aquarela e um pequeno pincel, foram utilizados pacientemente.
Um pequeno foco de luz, aparecia na parede, mas não se viam as imagens. Ajustamos a lanterna, afastando-a mais um pouco e começamos a ver os desenhos, enquanto um rodava a pequena manivela que continha a película de celofane e o outro aliviava a manivela de baixo. Era, afinal, um trabalho delicado e moroso, mas todos rejubilamos quando surgiram as primeiras imagens. Todavia, as cores com que pintamos a película, não eram visíveis. Alguma decepção estava instalada, depois de tanto trabalho.
A experiência, não se voltou a repetir. Na nossa ignorante ideia, as cores deviam passar para a parede, tal como as víamos na película, o que não aconteceu. Ainda assim, guardei a caixa numa pequena dispensa que havia no quintal. Ficaria como recordação. A vida continuou e mais tarde saí de casa, indo viver para o Porto. Depois, os meus pais vieram também.
Um dia, o meu pai chamou-me e disse: Tenho aqui uma pequena surpresa para ti. Foi ao quarto e quando regressou, vinha com a velha caixa na mão. Sorridente, disse então: Resolvi guardá-la, porque vi o trabalho que tiveste e pensei que irias ficar contente. Um pouco mais tarde casei e mudei de casa, mas a "caixa do cinema" foi comigo.
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